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NOTÍCIAS

Kitutu – comida apetitosa, afetiva e ancestral

 

Eu sou a mestra Kelma Zenaide, culinarista, trabalho com a culinária afro brasileira, com foco
no protagonismo e valorização da mulher preta cozinheira.


Eu comecei a trabalhar muito cedo. Na verdade, a cultura alimentar começa a partir dessa
observância do terreiro de minha casa, com horta, criação de galinhas, porcos, e pé de fruta no
quintal. Nos anos 80, os quintais ainda não eram cimentados, então nós tínhamos essa
maravilha que é de pisar na terra, de poder a família estar toda junta e plantar algo.
Meu avô e meu pai sempre gostaram de plantar. Meu pai sempre mexeu mais com a horta. Eu
me lembro dele sempre plantando as coisas mais diversas como couve, cebolinha, salsa. Meu
pai sempre planta dentro dos períodos. Tinha beterraba, rabanete, cenoura, e a gente ia se
alimentando com aquilo.


Da mesma forma, meu avô com as criações de porcos. A gente matava porcos pelo menos de
duas a três vezes no ano, e galinha sempre tinha no terreiro. Até que um dia, a prefeitura de
Contagem falou que a gente não podia mais ter criação nos quintais. A partir deste momento
da um corte nesta questão alimentar.


Então, eu volto em 2013 com a Kitutu, pensando justamente em trabalhar com a questão dos
resgates, e minha preocupação sempre foi essa. Eu não gosto de ter um cardápio fechado,
pensando aqui no território e nos meus eventos de rua, pois a sazonalidade é o mais
importante. Eu acho que a gente precisa tanto na casa da gente, quanto no empreendimento
aproveitar o período de safra para ter um alimento mais saboroso com o valor mais em conta.
Neste período agora eu sempre sirvo uma moqueca de banana da terra e ela é servida com
acaçá. Normalmente a farinha de acaçá é usada nas comidas de matriz africana, mas eu uso
ela na moqueca de banana. Agora a mandioca amarela está no período de safra. As vezes acha
até de 1,59, 1,99. Eu retirei o acaçá que é uma farinha que aumentou muito ultimamente, e
estou utilizando a mandioca amarela para fazer a base do prato.


Acho que é fundamental as trocas, pois como o acaçá é feito com o milho branco, neste
período vai aumentar ainda mais. Mas eu também posso aproveitar o milho da canjica, a
textura muda um pouco, mas dá para se aproveitar também.

Eu tenho um prato que chama angu de mina. Como o milho amarelo pode melhorar de preço
agora, porque é safra, neste período eu coloco uma rodela de milho amarelo no angu de mina.
Então, meus pratos vão alternando.


Um aperto que eu passo em relação a insumos é o coentro. Eu uso bastante coentro e dendê.
Então, o coentro para a moqueca de banana, tem época que a gente não acha. O que eu faço?
Uso a semente! É outro sabor, pois o coentro são muitos em um, ele é a folha fresca, semente e
raiz, são três sabores diferentes em uma planta só. Mas dá para ser utilizado em outros
preparos. No caso da moqueca de banana eu troco a folha pela semente. 


Como você acha que os quintais permearam seu caminho enquanto culinarista?
Os quintais são espaços femininos e espaços de cuidado.
Geralmente a criança está ali solta, ela pode ficar tranquila, pode ficar à vontade, pode
experenciar, pegar coisas e colocar na boca.


No meu caso, era meu avô e meu pai que plantavam, mas minha mãe sempre estava ali. Ela
tava mexendo no fogão, lavando roupa, e como se diz, correndo o olho nas crianças.
O quintal é saudável em todos os aspectos, para a mulher que é mãe que está ali para cuidar
dos filhos e consegue ter uma relação melhor com os filhos, e para os filhos, que podem
transitar naquele espaço e conhecer/experienciar várias coisas.


O espaço do quintal foi fundamental para eu ser quem sou hoje, para pensar a Kitutu, para
pensar uma alimentação melhor.


Eu tenho muita preocupação com meus enteados, em serem criados em apartamento, e de
crescer achando que tudo está na gondola do supermercado. Por mais que tenha uma roça que
é da família deles, que eles vão e correm atras de galinha, e fica na brincadeira lá, mas no
mesmo tempo a vivência diária é passada aqui dentro da cidade e dentro de um apartamento
fechado, e vendo televisão e celular. E o que a televisão apresenta para nós? Os meninos ficam
vendo esses programas de influencers, e eles fazem muitas experiências, e elas são todas
cheias de químicas.
Quando é um alimento real, é coisa que você não sabe a procedência, pois eles não citam. Eles
poderiam ser mais educativos. Mas são pacotinhos de salgadinhos, cheios de sódio, corante,
isso me preocupa muito! E eles querem reproduzir. As crianças raramente tomam suco natural,
eles querem o suco artificial da caixinha tal, porque o suco da caixinha tal tem o cara do
programa que assistem e oferece isso.


Eu vejo que as experiencias surgem muito dos desperdícios das coisas. Não tem nada
educativo.


Também me preocupa as escolas. Foi muito difícil a luta para uma boa alimentação nas
escolas. Na minha época, os alimentos eram a base de carboidratos, tinha um arroz misturado,
mas era só um arroz ou um feijão. Eram alimentos extremamente doces, não tinha carne.
Chegou um certo momento que o alimento da escola foi melhorando, porém em algumas
escolas as crianças levam o lanche. Eu não consigo entender como não conseguimos barrar
isso.

Tem certas coisas que precisam começar pela base. A criança precisa entender que o alimento
saudável é necessário para sua educação e que ela vai crescer melhor a partir do momento que
se alimenta melhor. Isso precisa partir da escola, pois as crianças ficam lá o maior período do
dia. Isso me preocupa muito, como a escola está lidando com isso? O professor não tem essa
preocupação.


Eu acho que no ensino básico, já passou da hora de ter uma educação alimentar, nem que seja
ações pontuais, tipo uma vez por trimestre, porque senão a gente não vai conseguir. Estamos
passando por um período de resgate alimentar, eu acho que a cidade não comporta mais a
gente.


Como seus pratos contribuem com a memória afetiva?


Kitutu significa comida apetitosa na língua bantu. Eu crio a Kitutu em 2013, com o objetivo de
trazer para Belo Horizonte, para os eventos de rua, pois comecei assim, algo que fosse singular
e que pudesse contar a história da minha família.


Sou remanescente do kilombo de Pinhões em Santa Luzia, porém eu não fui criada lá, eu não
faço parte fisicamente daquela comunidade, eu sou nascida em Contagem. Meu avô saiu de
Pinhões e foi trabalhar em Contagem muito novo, formou sua família em Monlevade, e no meu
caso, minha mãe chega em Contagem com 15 ou 16 anos.


Meu avô criou toda família em Contagem, nesse sistema kilombola. Tinha a casa do meu avô
na frente, mais três casas no fundo, e tinha um fogão de lenha no meio, onde a gente sempre
se reunia neste terreiro com a família para conversar e saber : -“O que você fez hoje?” – Eu fiz
um frango. -“Que bom, eu fiz um macarrão.” Então vamos juntar todo mundo e fazer uma
comida aqui e se sentar. Essa é a importância dessa comunhão da família em torno do
alimento.


Meu avô chegava em casa do trabalho e eu me sentava do lado dele no terreiro. Ele puxava um
toco de madeira para sentar, tirar a bota e preparar as carnes. Então, ele pegava um pilão,
pegava cebola roxa, pimenta, pimenta do reino, pimentão e urucum para fazer o tempero. Ele
macerava ali calmamente, cortava tudo com o canivete que ele sempre mantinha na cintura,
cortava aquilo ali e ia contando histórias. Aí se levantava, ia para o fogão colocava a panela no
fogão para esquentar, acendia a lenha, colocava a banha de porco, refogava aquilo ali. E eu
sempre observando.


Lembro que a partir dos 3 anos eu comecei a colocar mais atenção nesta forma de meu avô
lidar com o alimento dentro de casa, sobretudo o coração de boi recheado com toucinho
fumeiro.


Antigamente, os corações vinham fechados, vinha aberto só a parte superior do coração. Até
isso influencia na nossa alimentação, pois é algo que desde a infância eu tô acostumada a ver
meu avô fazer e depois eu comecei a reproduzir também. O coração, hoje em dia, quando você
consegue comprar, pois hoje em dia não consegue achar em todos os açougues, ele vem como
uma manta, ele vem aberto. E por quê? Foi decretado em algum momento que o coração de
boi era usado para fazer magia negra. Aí os órgãos competentes decidiram que esse coração
não seria mais vendido fechado. Então hoje eu compro o coração de boi e ao invés de eu fechar
só aparte superior, eu preciso costurá-lo todo, depois de recheado, para depois fatiar o
coração. Às vezes eu mesmo pego o toucinho e ponho para secar. Eu não tenho fogão a lenha

em casa, mas coloco pela noite no sereno, retiro, ponho na geladeira e faço aquele processo
para rechear o coração de boi.


Eu me lembro bem que isso era algo que me deixava fissurada – ver meu avô costurando com
uma agulha curva e a linha de sapateiro que ele tinha, (e eu tenho essa agulha). Falo que meu
avô costurava corações, pois em todos os aspectos ele era uma pessoa extremamente
generosa. As pessoas iam lá em casa para bater papo com ele, comer o coração ou então a
farinha que ele fazia no pilão, pois essa tecnologia do pilão é importante. Quais são os
utensílios que a gente usa? O pilão! Até hoje eu uso o pilão para fazer paçoquinha.
Para paçoquinha, uso amendoim, cacau 90%, canela e rapadura. Pilo tudo ali. Pego a rapadura
primeiro, faço o doce de rapadura pilando. Fica tipo um doce de leite molinho, aí vou
misturando o amendoim, o cacau e a canela, e vou pilando. O amendoim vai saindo os óleos e
vai juntando, e depois vai formando as paçoquinhas.


Meu avô não fazia paçoquinha assim. Ele fazia farinha de amendoim e era com a farinha
torrada, que hoje a gente quase não vê. Tenho um pacote aqui que comprei no evento na
Serraria Souza Pinto, pois ela é raríssima de achar. Então meu avô pilava a rapadura com
amendoim e a farinha e depois passava pelas mãos para soltar, até ela ficar bem soltinha. E
aquilo ali era guardado nos potes de leite/neston antigamente e toda a atarde após o almoço,
as vezes após a janta ele tomava.


Após o almoço, minha vó enchia o caneco de leite morno e ele colocava umas colheradas de
farinha de amendoim, e no finalzinho, depois de tomar, era um ritual! Ele almoçava muito
lento, ele ficava quase uma hora na mesa. Ele arredava a cadeira, pegava o prato nas mãos e
ia bem próximo e comendo, conversando e comendo. E depois tomava esse leite com farinha, e
no mesmo copo jogava o café, balançava e bebia. Ai depois ele ia dormir por  horas e depois
fazia as outras coisas.


Isso tudo me atravessa. Essa questão do fundo de quintal.


Minha mãe, com o saber dela, me possibilitou experenciar e fazer coisas diferentes na cozinha.
Eu sempre via coisas diferentes na TV e ela estava lá me apoiando para experenciar e mudar as
receitas, o que eu poderia mudar para ser diferente. E a cozinha da Kitutu é muito isso. Tem
feijão tropeiro, tem, mas o meu tem um molho de leite de coco e dendê nele. Não deixa de ser
o feijão tropeiro, mas eu trago o meu toque, e vai com carne de lata também. O torresmo que
eu sirvo também é mantido na lata. Hoje quase ninguém faz na lata, é trabalhoso para fazer,
mas eu faço e guardo por muitos períodos. Não gosto de abrir a lata de torresmo com menos
de três meses para ele ficar macio e bem sequinho.


Minha mãe me deu a possibilidade de ter coragem de arriscar no tempero, de colocar ervas
diferentes, onde as pessoas achavam, aqui não pode, isso não combina, minha mãe dizia:
vamos tentar.


O torresmo eu aprendi a fazer com meu pai. Lá em casa, quando matava porco, ele tirava as
lascas e tirava toda a banha, porque ele fazia separado toda a banha e a pele. Meu pai salgava
a pele e colocava no varal, depois só jogava na gordura quente e pupurucava.
A outra forma de fazer é do jeito que eu faço: põe na panela e vai mexendo bastante, o
torresmo só estoura a partir do momento que você mexer menos, só quando gruda no fundo
da panela, é isso que faz ele estourar. O segredo do meu toucinho é braço, o toucinho você tem que mexer, mexer. Não é cachaça, não é bicarbonato, é mexer. Ele vai cozinhando e você vai
mexendo.


Lá em casa tinha essas duas formas de fritar, meu avô fritava e separava e o que sobrava dessa
fritura, a gente passava no espremedor de batata, extraía mais a banha ainda, e essa paçoca,
você misturava e fazia outra paçoca. Do porco, você faz o toucinho e dependura, e com a
gordura e a paçoca misturada com farinha se faz no pilão a paçoca para você comer na mão,
tomando uma cachaça.


`Para eu trabalhar com o alimento é algo primordial, porque o alimento tem a ver com todas
nossas vivencias. Algumas pessoas falam assim: Isso faz mal. Não vou falar cientificamente
porque não tenho essa expertise, mas para mim, só faz mal aquilo que nosso organismo não
está acostumado e o exagero.


Fui criada com gordura de porco e com horta no fundo do quintal. Como fruta todo dia, por que
meu corpo precisa, o meu DNA pede. A partir do momento que eu conheci o litoral nordestino,
eu não deixei de ter dendê em casa, porque meu corpo pede dendê. O alimento que eu faço
pede dendê, eu sinto falta de comer com dendê, e por quê? Porque eu trago uma memória do
meu DNA e ela só precisa ser acionada.


A partir do momento que taca um monte de farinha de trigo em quem não está acostumado a
comer farinha de trigo, taca leite, essa pessoa não vai dar bom. Na sua essência, seu
organismo não está acostumado com aquele tipo de alimento, então em algum momento ele
vai expulsar.


A quantidade de açúcar que consumimos hoje foi posta pelo colonizador, por mais que a gente
tinha uma afinidade com a produção da cana, com o melaço de cana, o açúcar refinado não é
algo que faça parte da nossa carga genética. A partir do momento que começamos a usar essa
quantidade de açúcar branco, o corpo grita, vai dar diabetes mesmo. É diferente de consumir
uma frutose, um melaço de cana ou um açúcar melhor, o demerara.


Eu estava falando no Senac essa semana. Nós precisamos entender quem somos, de onde
viemos, por que a partir daí todas as questões ficam mais fácies, pois o indivíduo bem
alimentado é melhor para o mundo em todos os aspectos.


A insegurança alimentar está aí. Nós diminuímos a fome no país, mas ainda somos um dos
países que mais tem gente com fome no mundo, e um país que mais produz alimento, porém
mais desperdiça também. Aí você pensa: o cara tem lá nem sei quantos hectares de pés de
manga, então ele vai colher e a manga que o Ceasa aceita não pode ser diferente, ela tem que
ser um padrão. Quem que estabeleceu esse padrão de qualidade? Quem definiu que isso pode
ir para venda? Isso pode ficar no Brasil? Isso pode ir ser exportado? Isso aqui não serve porque
está com um amassado, aí vira suco, que se pelo menos fosse a fruta de verdade só. Mas se
enche de conservantes e açucares, e se coloca na prateleira, e é só isso que nossas crianças
consomem. Eu acho que 80% das crianças consomem suco de caixinha, ou pior, em pó (até
arrepio!). Então como vamos fazer para mudar esse processo?


Eu tento mudar, eu trago nos meus pratos mudanças. Eu tenho um prato que chama angu de
Mina, e ele homenageia os povos da Costa da Mina. Quando eu fiz, eu não sabia que meu DNA
é 96% africano, então eu criei esse prato em algum momento.


A história desse prato é fantástica, pois eu tinha acabado de acordar, e começou a ecoar uma
voz, porque as coisas são muito assim para mim, pois quem é de matriz africana é assim. E as

coisas começaram a ecoar: “Você poderia fazer um prato diferente com o coração de boi, você
pode partir ele em iscas e colocar uma outra carne no meio, colocar legumes e fazer uma base
de angu de fubá de moinho d’água”. Eu pensei assim, que doideira, eu tinha acabado de
acordar, é assim, assim, assim e assado. E eu pensei “É sério, eu devo estar alucinando assim”.
De repente Seu Marabô me pega deitada na cama, e eu falei assim: “alucinada que nada”. Eu
me levantei, peguei o carro, e fui no único açougue que eu sei que vende coração de boi. Peguei
o coração, votei para casa e fiz, do jeitinho que ele tinha falado para mim.


Na hora que eu coloquei na boca, meu olho encheu de água e eu pensei assim: Caramba!
Parece que toda minha vida eu comi isso. E esse prato é o que me deu visibilidade na mídia, e
não é à toa que ele é de Esù, pois ele abre os caminhos para a mídia e para visibilidade.
Isso já tem 8 anos. Fui na Rede Minas, na Rede Globo, todo mundo atrás para falar deste prato,
que é o angu de Mina. Foi na pandemia que eu resolvi dar  o nome para homenagear os
escravizados que foram trazidos para cá oriundos da Costa da Mina.


Em 2019, eu resolvi fazer meu DNA porque as coisas vinham muito assim, faladas, faça isso,
faça aquilo, faça, faça, faça, e eu pensei, preciso fazer meu DNA e entender de onde que eu
venho, até mesmo para dar mais concretude no trabalho da Kitutu. Aí enquanto eu pego meu
DNA 96% africano – Costa da Mina, Sul da África e um pedaço do Leste africano – Estou
homenageando os meus mesmo!


Tudo que eu faço na Kitutu está gravado na minha memória genética, então eu trago muita
coisa de Minas, mas a minha culinária não é afro mineira, ela é afrobrasileira. Trago muita
coisa do norte e do Nordeste também. EU trago farinha, amendoim, leite de coco, dendê, e os
modos de fazer também. Eu estou alimentando minha alma, meu ancestral e para mim,
comida é isso.


O alimento quando é saudável, puro, ele é um alimento que te alimenta além da boca, ele tem
que partir de outros pré supostos, e isso eu não abro mão, e da valorização da mulher também
neste ofício.


Nós mulheres, pensando em todas as revoluções que vivemos – e aqui uma das mais
importantes, foi a revolução dos Malês. Se não fosse Luiza Maim, que carregava no seu
escapulário e no seu balaio cheio de alimento para circular em Salvador, ela que levava as
informações para que a revolta dos Malês fosse feita.


Hoje em dia, eles querem tirar nosso protagonismo deste lugar, então se fala somente dos
homens brancos chefes de cozinha. Uma profissão que não tinha valor, eles trocam o nome, e
deixa de ser cozinheiro e cozinheira e coloca o título de chef. Agora não é mais culinária e sim
alta e baixa gastronomia, denominam desta forma para excluir mulher e mulher preta deste
ofício.


Quem sustentou e ainda continua sustentando a boca de todos nesse país somos nós mulheres
pretas. Esse PIB desse país só é o que é porque nós mulheres pretas estamos na frente de todos
os fazeres, e aos poucos eles vão tentando tirar de nós isso.


Eu sou formada em Letras, em literatura afro brasileira, mas eu nunca deixei de ser cozinheira,
e aí parte da minha família questiona: Você estudou para ser cozinheira? É como se fosse algo
de menor valia, e eu tento mostrar para as pessoas exatamente o contrário, pois você pode ser

o que for, não precisa ter um curso superior, a questão não é essa. Você pode fazer do seu
ofício algo que seja digno, pode mostrar para o outro – esse aqui é eu trabalho e tem valor.
Estou tentando o mestrado em antropologia para que justamente a gente possa ter o registro
desses fazeres, destas mulheres, destes festejos. Das festas de congado, que servem sempre os
mesmos pratos em qualquer região que você for. É servido, macarrão, tutu, carne de porco, ou
frango ensopado e arroz. A comida não falta, ela rende!


Quero compreender por que esse prato é sempre servido em qualquer congado que você for
em Minas. Isso é nossa história, isso tem por quê. Então eu quero deixar um registro acadêmico
sobre isso também, porque quero que meus sobrinhos entendam que cozinheira tem valor sim.
Em Minas Gerais, temos a Benedita Ricardo, foi a primeira mulher (que é negra) a ter um
diploma de chefe de cozinha, e ninguém fala sobre Benê Ricardo. Essa mulher fez mundos e
fundos para que a gastronomia de MG e do Brasil, fosse o que é hoje e ninguém fala dessa
mulher, ninguém cita o nome desta mulher.


A gente precisa resgatar essas histórias, precisamos resgatar os nomes destas mulheres. A
gente não pode deixar nossa história se perder. Simplesmente virou a página e se perdeu, não
podemos!